Uma disputa concorrencial que já dura dez anos entre as gigantes automotivas Fiat, Ford e Volkswagen e as fabricantes independentes de autopeças será julgada na semana que vem pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Além de liberar empresas não licenciadas a venderem peças de reposição de veículos, o órgão pode impor uma multa milionária às montadoras e abrir caminho para se discutir os limites da propriedade intelectual no país. As duas partes concordam em apontar que a decisão do Cade impactará em todo setor que registra desenhos industriais de partes de produtos mais complexos.
O processo foi movido pela Associação Nacional dos Fabricantes de Autopeças (Anfape) e apura se as três montadoras abusaram de seu direito de propriedade intelectual ao acionar na Justiça fabricantes de autopeças não licenciadas que vendiam peças de reposição para veículos produzidos por elas.
A Anfape afirma que os registros feitos pelas montadoras no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) aplicam-se apenas ao mercado de carros zero quilômetro e não ao de autopeças. Assim para elas, fabricantes de autopeças poderiam produzir partes cujo desenho industrial é registrado no INPI sem pagar royalties. Os grupos automotivos discordam e dizem que a lei de propriedade intelectual garante às companhias os direitos sobre os desenhos que desenvolveram inclusive no mercado secundário e que companhias só poderiam produzi-las caso fossem licenciadas.
O caso está em análise na autoridade antitruste desde 2007 e chegou às mãos do relator, o conselheiro Paulo Burnier, no ano passado. Ao concluir a investigação, a Superintendência-Geral (SG) do Cade entendeu que as montadoras estão erradas e recomendou sua punição, com aplicação de multa e a “não imposição dos desenhos industriais em questão em face dos fabricantes independentes de autopeças de forma a eliminar a conduta anticompetitiva identificada”.
As montadoras esperam mudar o entendimento da SG no plenário da autarquia. Para elas, “o resultado [da SG] é uma análise que alça o Cade à condição de rever qualquer decisão ou política pública no Brasil”, conforme afirmado em petição da Volkswagen. “As recomendações da SG conseguem ferir, com isso, as decisões dos Poderes Legislativo, Judiciário e do próprio Executivo”, acrescenta.
Isso porque a argumentação das montadoras se baseia, entre outros, no fato de que as ações citadas pela Anfape no processo como abusivas tiveram decisões em prol da Fiat, Ford ou Volkswagen. Assim, no entendimento delas, o Judiciário já se debruçou sobre o assunto e entendeu que as montadoras mantem o direito exclusivo de produção ou licenciamento no mercado de peças de reposição.
“A imposição de direitos de propriedade industrial é legal e lícita, sendo tais ações judiciais a legítima forma das montadoras fazerem valer seus direitos. Inclusive, na maioria esmagadora dos casos, o Judiciário tem dado razão à Ford e demais montadoras nestas ações”, diz a empresa em petição registrada no processo.
“O argumento de que montadoras apenas aplicam a lei quer tirar do Cade a responsabilidade de colocar limites em conduta. O Cade existe para poder julgar e avaliar eventuais abusos que se cometem com direitos adquiridos”, contra-argumenta o presidente da Anfape, Renato Fonseca.
“O caso não é importante só para nós, mas para o conceito de propriedade industrial. Nossa tese é que não deve haver proteção de desenho industrial para parte de produtos complexos para fins de reestabelecer a aparência original. Isso transcende mercado de autopeças. Se você estender isso, verá vários mercados em que essa proteção não faz sentido, como em relógios e partes de roupa, por exemplo”, continua.
As montadoras concordam com a importância do caso, mas acreditam que os efeitos de uma decisão contra elas seria um retrocesso no conceito de propriedade intelectual. Uma decisão do Cade de punir as fabricantes de veículos “produzirá consequências gravíssimas e irreversíveis ao sistema de propriedade intelectual” e “não apenas para as montadoras, mas para todos os demais mercados em que haja proteção de peças”. O Cade não quis comentar o assunto porque não se pronuncia sobre processos em andamento.